Eu sou o que
não desejo dar-te
não desejo dar-te
o que de mim entregaria
no teu natural espaço
Sou o que te dou
Sou o que te dou
recíprocas inteiras
todas
numa só vida
e ambas.
A história do Cabo de Santo Agostinho se inicia antes da chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil: Vicente Yánez Pinzón, navegador da Armada de Cristovão Colombo lhe nomeou Santa Maria de la Consolación, assim ele se chamou de 1500 até 1560, quando então recebeu o nome de Nossa Senhora da Madre de Deus do Cabo de Santo Agostinho, dado por João Paes Barreto. O porquê dos espanhóis não se apossarem da descoberta está descrito no Tratado de Tordesilhas (1494), um acordo para exploração de terras do qual faziam parte, Portugal e Espanha. Por essa época os habitantes do lugar, em sua maioria, eram índios da tribo Caetés. Em 1812, o pequeno povoado de casas espalhadas foi elevado à condição de Vila e em 1877, a de cidade. E ela transpira e respira sua própria história através da preservação das ruínas extraodinárias da época colonial.
Finalmente, chegamos à adorável, e, felizmente, pessimamente conservada estrada de barro que sobe inteira até a praia de Calhetas e desce suavemente até a orla. As paisagens que se descortinam são de um mar azul impressionante, entrecortado no fundo da floresta. Pelo caminho, recebemos saudações dos moradores nativos: bons dias naturais educados de berço.
O esforço de dirigir na estrada acidentada é recompensado pela acolhida dos moradores e pela visão azul densa do mar acomodado na praia curtinha, limitada nas extremidades por rochas e serras.
Caminhando entre as rochas que se depõem na orla, enveredamos por trilhas abertas a passos, sempre subindo, com o objetivo de ter uma visão mais ampla do conjunto de serra e mar, depois, descemos novamente até as pedras, onde a água do mar faz represar pequenos peixes coloridos.
Nesse rumo, um estranho habitante veio tomar satisfações sobre aquele abuso na sua paz; um lindo camaleão adulto, de expressão nem um pouco amistosa, correu a se escafeder no mato levando a certeza de que não era a nossa intenção perturbá-lo. A esta altura do dia, o sol já tinha dado o ar da graça, um tanto inerme, e pudemos ver as edificações da orla de Jaboatão dos Guararapes, como uma visão surrealista, planando na linha do horizonte. Aqui, a paisagem convida a contemplação e, o silêncio, a exceção do fragor do vento, do ressoar das ondas descambando sobre as pedras, se impõe soberano.
Deixar-se tocar pelo sol, pela grande massa de espuma e pelo calor das pedras, demoradamente, sem barreiras têxteis, é estar disposto ao mais primitivo e insonhável de todos os batismos. Permitimo-nos.
Na Vila Nazeré, tive a atenção despertada por um Museu de Pescadores, mas para a minha frustração não o visitamos, pois estava fechado para reforma. Seguimos em frente, então, para a Igreja de Nossa Senhora Nazaré, construída no séc. XVI próxima às ruínas do Convento Carmelita, construção do séc. XVII. No pátio estava armado um parque de diversões, delimitado ao lado direito pelos muros da igreja, ao lado esquerdo por barracas de comerciantes de comida e bebida, na frente, pelo pequeno cemitério, onde flores artificiais e um coveiro cumpriam suas atividades em calmaria, ele abrindo uma cova nova, elas fingido vida em moradas onde esta já não era mais possível.
Sentamo-nos à sombra de uma das barracas imaginando a vida da criatura, em seu féretro, que fizera jus àquele quinhão agrário. Logo descobrimos se tratar de um jovem rapaz da localidade, cuja violência urbana havia engolido a vida precocemente, longe dali. A moça que narrava, em pormenores, o drama daquele acabamento, falava consternada, ao nos despedirmos, informou que o enterro seria às quatro da tarde, como se estivéssemos marcando encontro para um evento qualquer.
Por sugestão dela subimos mais um pouco, errando o caminho até a recomendada Praia do Paraíso, indo dar em um elevado de vista sufocante. Um rústico mirante de rocha calcária abre visão para a Praia de Suape e para a maior das esperanças de crescimento econômico da região nordeste, o Porto de Suape.
Protegidos do vento pela floresta, a acústica do local nos faz ouvir vozes indistintas vindas da Praia do Paraíso, que visitamos na volta, uma réplica de Calhetas em proporções menores. Atraente, quase selvagem e familiar.
Decidimos retornar ao centro da cidade, onde a desconstrução do que havia no início a deixa semelhante a um animal inconsciente do seu papel na cadeia alimentar. Esperando para ser devorada em holocausto pelo grande monstro da prosperidade que se movimenta bem perto, na terra e no mar.
Um carona nos induz a visitar a Enseada dos Corais e a Praia de Gaibú. Desistimos em um acordo tácito; o centro comercial atrapalhava a nossa curiosidade e boa vontade.
Almoçamos comida regional, preparada na hora, com toques de personalização ao paladar, em um restaurante às margens da estrada de pedras de acesso a Calhetas, para onde retornamos a fim de capturar a extremidade esquerda da praia, mas a iluminação se apresentava amarelada por causa do declínio do sol, o que nos deu a impressão infalível de havermos chegado tarde, com tempo escasso e, poucos olhos para o tanto que havia a ser visto.
Não sem surpresa, ouvi o convite do companheiro para esticarmos novamente a aventura até a Vila Nazaré. Avizinhava-se a hora do cortejo fúnebre sair e a menos que ele estivesse disposto a registrar o luto absoluto no rosto daqueles familiares e amigos do morto, o convite só poderia significar a sua pouca disposição em abandonar aquele clima das relações interpessoais interioranas, como pouca era a minha.
Enfim, às quatro e dez da tarde, decidimos tomar a estrada de volta. Despedimo-nos mais uma vez da moça da barraca de comida e da senhora do bazar, onde as peças de roupas e calçados usados variavam de um real até onde pudesse ir o interesse do cliente, nunca ultrapassando o valor de vinte reais.
No caminho me fiz mais um agrado, adquirindo pimentas em conserva, licores artesanais, castanhas e passas de caju.
E não... Não nos encontramos com o cortejo fúnebre na estrada de pedras. Chovia.
Fotos: Daniel Bezerra |
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