Um Conto de Natal

Falta
pouco para a meia-noite. Lá fora o burburinho do dia cede completamente lugar
às vozes dos bichos que povoam a região da caatinga. Corujas solitárias singram
as sombras rasgando seu canto agourento. O chilreado dos grilos está a exigir
as respostas que por toda a sua vida a vida não trouxera, e o vento amordaçado,
morno, inquieto, passa levando o calor das paredes sujas do cárcere. Os olhos
dele correm o piso de pedras irregulares, já as havia visto antes, mas a
tentativa da lembrança deixa em suas narinas um cheiro acre de madeira
misturado à poeira e sangue. No pensamento vacila um vazio de misericórdia
pelos dias imêmores do povo abrigado no isolamento dos seres da Terra.
As
horas escamosas, lerdas, serpentes, sibilam haver chegado o tempo de cumprir as
promessas do Criador. O tempo velho do lúmen das estrelas. O tempo das raízes
dos cardeiros. Do sal da terra. Dos plânctons do mar. Do mel das flores. No
catre de varas, ele abraça o tronco e se encolhe feto, que não lembra ter sido,
criança pouco havida. Homem sublimado. A textura do algodão cru da camisola,
mais próxima da pele, não o faz desejar o conforto do mundo, tampouco, a fé na
fé do termo. Seu conforto é de dor e dor. É o medo que prega o suor. Sua
companheira já vem, sem luxos, é pura e sem e cor das estrelas que vira nascerem
e se apagarem muito antes que fosse cunhado o verbo que não lhe descreve a face
do Pai ou a sua. Antes que o pensamento fosse ato-reflexo de sua própria falta
de nexo. A sua existência poderia ter sido a multidão espelhada de semelhanças.
Por fora a areia polida detrás do reflexo. Ela cumprirá seu desígnio com a
docilidade irracional dos domados. É preciso uma única boa-vontade dos mártires
em vão para se alimentar do caldeirão onde os homens fervem suas mentiras, fraudes,
fianças e interesses.
A
última ceia fora servida sem fome, para o rito cumprido, ao som dos sinos da Igreja
agreste a recitar preces que ressoavam: “- Acalma-te. Tempo passado é tempo
findo. O tempo que vem surgindo traz o próximo tempo. É direito não ter direito
a nenhum deles. Tu ainda és homem. Morre-se.” Esperou sem as culpas que não deu,
com pavor e ansiedade, o que estava designado. Esperou. Agora, a réstia das
grades da janela do cárcere caminha sobre o chão frio em direção da consumação.
Aquela com quem se deitará vem pelas mãos dos tolos para os quais, mais uma
vez, pedirá a comiseração do Seu Pai, porque a sua própria já não serve. O
portal se abre incandescente, na cor dos seus estigmas. É hora de morrer em
plena ciência, e acordar à direita do Verbo que não germinou de larvas haploides,
mas do vazio escuro das chamas sob as águas, entre rochas. Em cima do catre,
rente às sombras, três cravos de ferro, uma coroa de espinhos e uma folha de
jornal, que lhe aquecera o frio como lençol, onde se lê as cotações amassados
das bolsas de valores do mundo inteiro, crimes para comover, a vida de alguém
para invejar, intrigas para a discórdia, resultados de jogos para se esquecer,
uma data no cabeçalho a definir eventos que se pode saber. Meia-noite. Não há
taxis ou mulas. Lenços nem véus. Não há fogos, nem um traque. Nem tristeza,
para ser de espera e esperança a Nova Era, perto demais dos arsenais. Nem
clarim nem caixa de guerra.
Silêncio.
Amém. Misericórdia.