Impossível saber quantas daquelas
cento e duas mil pessoas passaram por ele. As pessoas apenas marchavam, bradavam
e se desviavam. Ele não tinha modos de quem marchava. Agachei-me ao lado daquele corpo que tinha uma das pernas sobre
um boné que escondia um quilo de feijão. Os chinelos estavam espalhados. Parte daquele corpo sobre a calçada da ponte,
parte sobre o asfalto. As roupas apenas lhe ocultavam a nudez. Pus a mão no seu
peito e senti a respiração e pulsação. Ele abriu os olhos delirantes.
- Senhor? Senhor? O que sente?
Como se minha voz demorasse várias
doses de carbonato de lítio para fazer efeito, ele respondeu:
- Eu tô feliz!
- Certo. Mas, o senhor não pode
ficar aqui. Vai se machucar.
- Eu tô feliz!
Buscou para mais perto o boné e o
feijão. Algumas pessoas interromperam a marcha e se dobraram também,
seguraram-lhe pelos braços e pernas, o recostaram nos pilotis da mureta da ponte e marcharam.
O pulso do Homem Feliz batia cheio, rápido e irregular. Nenhum odor etílico
evaporava. Ele estava feliz. Uma garrafa com água dançou na nossa frente, e eu coloquei na mão dele para que bebesse. Não tremia, mas não tinha coordenação.
Ele estava feliz. O cristão da água marchava, marchou.
- Alguém! Faça chegar aqui o socorro!
Repassem! Alguém faça chegar à ponte o socorro! Repassem!
A água não caiu na garganta. Ele
tossiu, engasgou, cuspiu. Felicidade espessou a água e estreitou a garganta.
Felicidade quase mata.
- A moça é tão bonita...
O país marchava. Ele não
marchava. Defendia o boné, o feijão, e os chinelos entre as pernas magras
estendidas sobre a ponte que ampliava a marcha até o outro lado do rio, e flácido, esperava por não
sabia o quê. Lembrei-me de Patrícia: “- Em caso de elogio, meramente agradeça”.
Com ele foi tão mais fácil. Ele estava feliz. Quem marchava, marchou por não
sabia o quê exatamente.
Trinta minutos daqueles olhos
felizes postos sobre mim foi o tempo que levou para um grupo de estudantes da
área de saúde nos abordar com suas caras de Madre Teresa que ainda não sabe como é difícil a humanidade em seres humanos. Eles marchavam, marcharão.
- Check o pulso. Ele não
consegue engolir. Está feliz.
A minha sociofobia desrespeitada
já havia uns cinco quilômetros, eu marchei.
Levante Sem Causa em Junho e Julho de 2013.